A 25 de junho de 1984 o casal Eanes recebeu a Rainha Margarida e o marido, o príncipe Henrik, quando desembarcaram do iate real em Lisboa para três dias de visita com um intenso programa. Houve exposições, jantares, uma passagem pela Assembleia da República, um passeio pela Serra da Arrábida e uma estadia na ilustre residência do Palácio de Queluz.
Dia 1: a chegada no iate real e o banquete no Palácio da Ajuda
Segundo um preenchido e rigoroso programa de visita de Estado do dia 25 de junho de 1984, “Sua Majestade a Rainha Margrethe II e Sua Alteza Real o Príncipe Henrik desembarcam junto à Torre de Belém”, onde seriam recebidos pelo Presidente da República de Portugal e pela mulher. Por estes anos o país recebeu uma série de chefes de Estado numa espécie de operação de charme em vésperas de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). A candidatura nacional foi feita em 1977, em 1985 o tratado de adesão foi assinado no Mosteiro dos Jerónimos e entraria em vigor a 1 de janeiro de 1986. A Dinamarca já era membro da CEE desde 1 de janeiro de 1973.
O General Ramalho Eanes e Manuela Eanes foram o casal presidencial em Belém entre julho de 1976 e março de 1986 e coube-lhes, assim, serem os anfitriões de vários reis, rainhas e presidentes que visitaram Portugal. A Rainha Margarida II da Dinamarca foi uma das muitas figuras que receberam. “Era uma pessoa exuberante, simpática, afetiva. Em todos os momentos da visita ficaram boas recordações para ambos os países”, recorda Manuela Eanes sobre a soberana escandinava ao Observador. Manuela Eanes esteve presente em diferentes momentos do intenso programa da visita de Margarida II, nomeadamente no banquete oferecido pelo Presidente da República no Palácio da Ajuda, como se pode ver na imagem, cedida precisamente pela coleção particular do casal Eanes.
A Rainha Margrethe II quis vir para Portugal no iate real Dannebrog, que hasteou pela primeira vez a bandeira em 1932 e ainda continua no ativo e é uma das residências da família real, quando está em visitas ao estrangeiro ou em cruzeiros. O Diário de Lisboa deu conta da chegada real à capital logo no dia 25 e com honras de primeira página, onde o título “Tejo saudou Margarida” estava acompanhado por uma fotografia da Rainha e do marido com o rio atrás. O jornal dá especial destaque ao cenário na notícia e conta que a Rainha foi de avião até Vigo, onde embarcou no iate real para rumar a Lisboa e desembarcar em Belém. “Foi a primeira vez que vimos em Portugal um cenário digno, para a chegada de um chefe de Estado estrangeiro”, pode ler-se na primeira página. “Aproveitando o facto de Margarida II viajar para Lisboa de iate. O Presidente da República quis ensaiar um cerimonial diferente e mais digno para a receção a chefes de Estado estrangeiros”, continua a notícia no interior do jornal.
A soberana chegou com o marido, o príncipe Henrik, e uma comitiva de seis pessoas: um camerlengo Marechal da Corte, uma dama de honor, um camerlengo mestre de cerimónias, um chefe da casa naval e do iate real, um ajudante de campo da Rainha e um ajudante de campo do príncipe consorte. O ministério dos Negócios Estrangeiros dinamarquês da época, Uffe Ellemann-Jensen, trouxe também a sua própria comitiva com quatro membros.
“Centenas de crianças, muitas dinamarquesas, mas na sua maioria portuguesas, empunhando pequenas bandeiras da Dinamarca, deram às cerimónias da chegada da rainha Margrethe II, um certo sabor de conto de fadas”, pode ler-se no início da notícia do Diário de Lisboa. A Rainha foi escoltada a cavalo pela GNR até ao Mosteiro do Jerónimos onde continuaram as cerimónias protocolares, com a soberana passar revista a uma guarda de honra formada por um esquadrão da polícia do exército, assistiu a um desfile militar e depositou uma coroa de flores junto ao túmulo de Camões. Depois, como qualquer viajante que chega ao seu destino, foi instalar-se naquela que seria a sua residência durante as próximas três noites, o Palácio de Queluz, ou mais precisamente, o Pavilhão D. Maria I, mas já explicaremos o porquê deste lugar.
A Rainha Margrethe II e o marido terão chegado ao Palácio de Queluz pelas 11h30 da manhã e foram recebidos com uma parada militar. Seguiu-se aquilo que o programa desta visita de Estado chama de “almoço íntimo” e depois havia que continuar com a agenda de compromissos da parte da tarde. De regresso a Lisboa, a primeira paragem foi no Palácio de Belém onde o casal real visitou o casal presidencial e se trocaram presentes e condecorações. Na sua bagagem, Margrethe II trazia mais de 40 distinções para distribuir. Deu o Grande Colar da Ordem do Elefante ( a maior honra atribuída na Dinamarca) ao Presidente Ramalho Eanes e a Grã-Cruz da Ordem de Dannebrog à primeira dama. Também agraciou membros da presidência e da assembleia da república, bem como do presidência do conselho de ministros, do ministério dos Negócios Estrangeiros e da embaixada portuguesa em Copenhaga. No total foram mais 40.
A Rainha, por seu lado, foi agraciada com o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique e o príncipe Henrik recebeu a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Os membros das comitivas da monarca, do seu ministro dos Negócios Estrangeiros e da embaixada dinamarquesa em Lisboa também foram agraciados. De regresso à Dinamarca, a monarca levou ainda , “1 painel de azulejos portuguese, original de Cargaleiro, Flores de Lisboa” e ainda “2 conchas brazonadas de porcelana da V.A. com as armas de Portugal e da Dinamarca” como “Presente Pessoal”, ambos oferecidos pelo Presidente da República, segundo se pode ler num documento com a lista de presentes a oferecer por Ramalho Eanes durante esta visita de Estado. Este é um dos vários documentos que estão num dossier dedicado à vista de Estado de Margarida II que está no arquivo da presidência da república. O príncipe consorte recebeu “1 bandeja e prata portuguesa, c/ agata e âmbar, assinada L.F. Porto, C/ estojo de veludo”. Os restantes membros da comitiva também receberam objetos comemorativos desta viagem, que variou entre “1 serviço de condimentos brazonado c/ as armas de Portugal e da Dinamarca” e “2 conchas brazonadas de porcelana da V.A. c/ as armas de Portugal e da Dinamarca”.
Ainda por Belém, não se sabe se a comitiva terá tido oportunidade de provar os famosos pastéis da zona, mas sabe-se que Margarida II fez uma rápida visita ao Museu dos Coches. Depois voltou ao Palácio de Queluz onde recebeu a comunidade dinamarquesa em Portugal. À noite, o cenário foi o Palácio da Ajuda, onde o Presidente da República ofereceu um banquete em honra da Rainha. Mandava o protocolo que as senhoras usassem vestido comprido e que os cavalheiros usassem os seus uniformes diplomáticos ou casaca com condecorações.
Enquanto a primeira dama Manuela Eanes optou por um vestido azul de manga comprida com bordados florais, Margarida II usou um vestido verde claro com decote quadrado e alças. A monarca tem uma coleção de joias com extraordinárias peças, ricas em design e em história, e neste banquete usou aquela que é, provavelmente, a sua joia de cabeça mais irreverente. Muitas vezes chamada de “tiara das papoilas”, a peça consiste numa base da qual saem uma série de pés com uma flor na ponta. A peça data de 1976, é feita em ouro e foi desenhada por Arje Griegst especialmente para Margarida, que a usou inúmeras vezes ao longo do seu reinado. Esta base será colocada na cabeça, como as tiaras tradicionais, mas depois coberta com o cabelo, deixando que as oito flores apareçam espontaneamente por todo o penteado. A Rainha usou também um par de brincos a condizer com a tiara e um colar de pérolas com várias voltas e um pendente.
Dia 2: três palácios, a Câmara de Lisboa e a Assembleia da República:
Na verdade, o Palácio de Queluz conta com duas moradas, uma é o palácio nacional e a outra é uma residência independente onde entre 1940 e 2004 ficaram instaladas 117 comitivas com os mais ilustres convidados em visita oficial a Portugal.O Pavilhão D. Maria I foi a casa, por uns dias, de reis, príncipes, imperadores e presidentes. Talvez a mais famosa convidada, e certamente a que levou a mais alterações na residência para a receber, foia Rainha Isabel II, que ali ficou hospedada em ambas as suas visitas a Portugal, em 1957e 1985. Só durante o ano de 1984, além de Margarida II da Dinamarca, o Pavilhão D. Maria I recebeu também o Presidente da República de Cabo Verde (em fevereiro), o Presidente da República da Guiné Bissau (abril), o Presidente da República da Áustria (maio), o Presidente da Costa Rica (junho), o Presidente de El Salvador (julho), os grã-duques do Luxemburgo, os reis Balduino e Fabiola da Bélgica e o Presidente da República Popular da China (todos em outubro).
A distância de Lisboa e a normalização de outras possibilidades, como embaixadas e hotéis, fizeram com que em 2004 este deixasse de ser o espaço de eleição para instalar estas personalidades, mas ainda pode receber visitas, se tal for necessário. Entretanto foi gabinete de presidentes eleitos, como por exemplo Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa, e, desde o verão de 2021, assumiu o papel de museu com as portas abertas ao público, sob condições especiais.
Até determinada altura a decoração desta residência era pensada especificamente para os hóspedes que ia receber e entre 1957 e a década de 1980, a residência era decorada com objetos vindos de museus nacionais, segundo orientações dos diretores do Palácio de Queluz e do Palácio da Ajuda, que escolhiam o mobiliário, pinturas ou tapeçarias. A Rainha Margarida ficou hospedada numa altura em que já não havia esta prática. “A decoração da residência não teve muita movimentação, como aconteceu nas décadas de 1950 e 60. A partir de 1974 não há grande movimentação de entrada e saída de mobiliário da residência vindas de outros palácios nacionais. Já havia uma decoração e um recheio muito mais estabilizado”, conta Conceição Coelho, conservadora do Palácio de Queluz. “Nestas visitas podiam, contudo, ser colocados objetos da coleção do palácio no andar nobre, como por exemplo peças de ourivesaria ou porcelana”, mas eram movimentações pontuais e não existem grandes registos.
Foi no Pavilhão D. Maria I que o segundo dia da Rainha da Dinamarca em Portugal começou cedo. Às 9h00 recebeu o primeiro-ministro português da época, Mário Soares, e depois, acompanhada pelo marido, foi anfitriã de uma receção ao corpo diplomático. A primeira visita da soberana dinamarquesa naquela terça-feira foi à Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, seguiu-se uma paragem na Câmara Municipal de Lisboa para receber as chaves da cidade e assinar o livro de honra. Depois almoçou no Palácio de Belém com o casal Eanes.
Pelas 15h30 a comitiva real chegava à Fundação Calouste Gulbenkian. Margaria II e o príncipe Henrik inauguraram a exposição “Onze artistas dinamarqueses”, uma seleção de 100 obras de 11 pintores pintores dinamarqueses com datas entre 1945 e 1984. Esta exposição coletiva mostrou o trabalho de uma geração inovadora do pós-segunda guerra, esteve em exibição até 15 de julho no Centro de Arte Moderna e recebeu 6786 visitas,segundo dá conta o site da Gulbenkian. A ideia partiu do ministério dos Assuntos Culturais da Dinamarca com o objetivo de assinalar a visita da sua soberana a Portugal e foi concretizada em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian e contou com o apoio da embaixada dinamarquesa em Portugal. Depois de encerrar em Lisboa, a mostra viajou por outros países europeus.
O segundo compromisso da tarde foi na Assembleia da República. A chegada de Margarida II e do príncipe Henrik fez com que a sessão fosse interrompida. “Srs. Deputados vamos suspender os nossos trabalhos até às 18 horas e 30 minutos para recebermos Sua Majestade a Rainha da Dinamarca. Está suspensa a sessão”, declarou o presidente da assembleia da época, Tito de Morais, pelas 17h05, segundo regista o diário da sessão do plenário daquele dia. Seguiu-se uma sessão solene de homenagem à soberana na Sala do Senado, na qual proferiu algumas palavras. Às 18h50 os trabalhos foram reabertos no parlamento e Margarida II regressou a Queluz. A Rainha esteve acompanhada pelo marido durante todo o dia, que viria a acabar em Sintra, com um jantar oferecido pelo primeiro-ministro Mário Soares no Palácio da Vila.
Dia 3: exposições em Lisboa, passeio na margem sul e um jantar no iate real
A manhã do terceiro dia de visita foi novamente passada em Lisboa. A Rainha Margarida, sem o marido, visitou o Museu do Traje e a Biblioteca Nacional. Madalena Braz Teixeira, a diretora do museu na época, conta ao Observador que cerca de uma semana antes da vinda da Rainha Margarida, esteve em Portugal a mãe, a rainha Ingrid, que era prima dos duques de Palmela, cuja família tem o apelido Holstein, nome de uma zona na Dinamarca. Madalena diz que tanto Margarida como a mãe sabiam que o palácio, que é a morada do Museu do Traje, havia pertencido à família dos duques de Palmela e acredita que foi por isso que a soberana o quis visitar.
A antiga diretora do museu diz que a única preparação que fez para a visita da Rainha foi ir ao cabeleireiro. Quanto ao museu, lembra que pediu às pessoas que lá trabalhavam para fazerem “uma espécie de guarda de honra” para que, quando a Rainha chegasse “tivesse alguém a fazer uma receção”. Depois, todos voltaram aos seus trabalhos e a diretora fez uma visita guiada. Não mostrou o museu todo, porque seria muito grande, por isso fez a visita ao primeiro andar, “que é o andar nobre e o andar onde tinha a exposição mais interessante e ela gostou muito”. Conversaram tanto em inglês como em francês, consoante o tema, e Madalena Braz Teixeira achou que Margarida “foi muito simpática, muito atenciosa e uma pessoa muito descontraída” e aproveita para contar um pequeno episódio. A entrada do museu tem pequenas pedras no chão e a Rainha “sem querer, ao andar, meteu uma pedra no sapato e então como se sentiu mal, tirou o sapato, deitou a pedra fora e tornou a pôr o sapato” e tê-lo-á feito “com a maior naturalidade”.
A diretora, que por seu lado já tinha visitado Copenhaga para estar numa reunião composta por diretores e conservadores de museus do traje, conta que aproveitou a visita da Rainha para lhe perguntar se faria a doação de um vestido seu para o Museu do Traje e esta respondeu-lhe que iria pensar no assunto. Optou antes por conversar com a diretora sobre a sua relação com as roupas e como transformava os seus vestidos para os reutilizar e não gastar muito dinheiro. “Achei muito simpático. É uma conversa de uma certa intimidade.”
O passeio estendeu-se à parte exterior do museu, mais precisamente ao Parque Botânico do Monteiro-Mor, cujo responsável na altura era o engenheiro Sousa Lara, que também se juntou à comitiva que acompanhou a Rainha. De seguida, na Biblioteca Nacional, a soberana inaugurou uma exposição sobre o autor Hans Christian Andersen.
O príncipe Henrik teve o seu próprio programa separado nesta visita durante essa manhã. O consorte visitou a sede da Cruz Vermelha Portuguesa e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil. Ao final da manhã, juntou-se à Rainha e partiram para a margem sul do Tejo. Depois de um passeio pela Serra da Arrábida, o casal almoçou na Pousada do Castelo de Palmela e seguiu viagem para Azeitão, onde visitou as Caves J. M. da Fonseca e o Palácio da Bacalhoa. A última visita do dia foi à residência do embaixador da Dinamarca em Portugal. A meio da tarde, a Margarida II regressou ao iate real com que chegou a Lisboa e foi a bordo do Dannebrog que teve lugar o jantar de retribuição oferecido pela soberana às autoridades portuguesas.
No dia 28 de junho de manhã, o avião real dinamarquês aguardava na posição nº 3 da Plataforma A no aeroporto da Portela, porque o regresso da Rainha e do marido a casa seria pelo ar. A partida estava marcada para as 10h00. Meia hora antes estava prevista a chegada da soberana acompanhada pelo Presidente Ramalho Eanes. Mandava o plano para este momento que na pista se estendesse uma passadeira vermelha as habituais honras militares e cumprimentos de despedida antes da comitiva, num total de 13 pessoas partir rumo à Dinamarca.